O
Desprezo (Le Mépris, 1963) não é necessariamente um filme da
Nouvelle Vague, porque se afasta da liberdade técnica e autoral proposta pelo
movimento. Entretanto, é hoje considerado um clássico do cinema europeu. Julgado como um filme “menor” do diretor Jean-Luc
Godard, O Desprezo é notável pela complexidade
da metáfora que carrega.
É também repleto de características próprias de
Godard. No início, os créditos não nos são apresentados tradicionalmente, na
forma de letreiros. O próprio diretor os fala, e assim mesmo somente os nomes
dos atores. Outra marca registrada de Godard é a presença de referências: "O cinema
é uma invenção sem futuro", dos irmãos Lumiére e "O cinema
mostra-nos um mundo de acordo com os nossos desejos", de Bazin. A
frase de Jerry Prokosh (Jack Palance) - Quando
ouço a palavra cultura pego o talão de cheques - é também outra curiosa referência, que faz
menção a Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazista, que afirmou: Quando ouço a palavra cultura eu saco o meu revolver.
O filme narra a crise
amorosa de Camille (Brigitte Bardot) e Paul (Michel Picoli), casal que está de
visita à Itália. Paul é escritor de peças teatrais, mas para garantir uma vida
confortável à mulher, se compromete a escrever o roteiro da releitura do
romance épico A Odisséia para o cinema, o que pode render muito dinheiro. A
adaptação é produzida em Capri, dirigida por Fritz Lang, que interpreta a si
mesmo, e Jerry Prokosh, personificação de Hollywood, com sua arrogância e falta
de estima pela arte.
Em algum momento da viagem, Camille tem a
impressão de que Paul não a ama mais. Ela passa a nutrir desprezo profundo pelo
marido e entrega-se à Jerry Prokosh.
O
Desprezo trata, a princípio, dos dramas dos relacionamentos amorosos.
O brilhantismo de Godard está na metáfora da tragédia grega. Os personagens são,
possivelmente, adaptações da Odisséia de Homero: Paul é Ulisses assim como
Camille é Penélope, a esposa que aguarda seu herói. Mas a distância entre os
dois não é, desta vez, o Mar de Ítaca, mas um imenso e frio desprezo. Há quem
diga que o filme é autobiográfico e retrata, na verdade, Godard como o roteirista
e a esposa como Anna Karina, mulher do diretor na época.
À parte as referências e metáforas, O Desprezo é, também e principalmente,
uma metalinguagem do cinema. Trata-se da visão muito pessoal de Godard sobre a
arte de fazer cinema.
Godard depositou nos personagens as
representações do meio cinematográfico. Paul é o ingênuo e intelectual criador,
o qual acredita ser possível aliar mercado e arte. Fritz Lang, com sua presença
marcante, é a imagem do cinema tradicional e elegante, porém ciente das
limitações mercadológicas. Jerry Prokosh é Hollywood, que elimina a arte em
nome do lucro.
O
Desprezo não retrata, portanto, somente o declínio de uma relação
amorosa. É o retrato do desprezo de Godard pelo cinema submetido ao mercado – o
mesmo mercado que o obrigou a inserir mais cenas de nudez da musa Brigitte
Bardot – e do seu amor pelo cinema livre e sincero.
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